O livro e o leitor
Aqui sozinho
Millôr Fernandes
Aqui sozinho, toda a história da vida e da humanidade rola diante de mim. Respiro o ar inaugural do mundo, o primeiro perfume das rosas do Paraíso ainda recendente a originalidade. Vejo as pirâmides subindo; o rosto da esfinge pela primeira vez iluminado pela lua cheia; ouço os gritos dos conquistadores avançando através dos séculos. Observo o matemático inca no orgasmo de criar a mais simples e fantástica invenção humana, o zero. Entro na banheira em Siracusa junto com Arquimedes e sinto, emocionado, meu corpo sofrendo um impulso de baixo para cima igual ao quadrado do volume do líquido por ele deslocado. Reabro feridas de traições, angústias do poder, rios de sangue correndo pela história, justos sendo condenados, injustos apoteoticamente glorificados. Sinto as frustrações neuróticas de tantos seres ansiosos, e a tentativa de supera-las com o exercício de supostas santidades. Com emoção a que nada se compara, começo a decifrar, junto com Champolion, numa pedra com uma tríplice inscrição, o que pensavam seres humanos em dias assustadoramente remotos. Acompanho um homem num desses instantes de fulgor que embelezam e justificam a humanidade pintando e repintando o teto de uma capela. Ouço o som divino que outro artista compõe e que ele próprio é incapaz de ouvir. Recomponho o rosto de maravilhosas espiãs e cortesãs, seduzindo grandes e poderosos. Conheço lindas histórias de afeto, pungentes histórias de amor, incríveis histórias de paixão. Aqui, neste recanto tranqüilo, estou envolvido numa experiência única, pessoal e profunda, com tudo que passou, que se criou, se pensou. Eu, aqui, só com minha imaginação - e um livro.
http://www2.uol.com.br/millor/aberto/dailymillor/006/042.htm. Acesso em 1º/9/2006
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